Reflexão do Evangelho: Sobre a Vigilância (Lucas 12,35-40)

Sobre a Vigilância (Lucas 12

Vigiar é uma atividade de cuidado e atenção. Infelizmente vigiar, em nosso vocabulário comum, tornou-se uma palavra com conotação negativa muito forte. Pensando na religião, essa palavra se conectou de tal forma a uma imagem de um Deus que pune, ao ponto de se transformar, para muita gente, num lugar de medo, opressão, culpa e castigo. Nada mais contrário ao seu significado etimológico e à experiência cristã e de outros grupos de Deus.

Religião é para juntar as pessoas e a natureza. É conexão, relação amorosa e de equidade. É espaço de cura, sanação e transformação constante. A “verdadeira” religião, segundo o movimento profético, é “buscar a paz e a justiça”, “defender o órfão e a viúva” (cf. Tiago 1,27). Não deve ser lugar onde o medo e o castigo, a guerra, violência e intolerância sejam o prato do dia.

Essa prática, resultante de um tipo de teologia, foi amplamente desautorizada por Jesus. Mesmo seus discípulos estavam envoltos nesse universo teológico e de espiritualidade violento e intolerante. Precisavam experimentar outra leitura possível da religião na qual estavam inseridos. E não só os discípulos no tempo de Jesus, mas também a Igreja de Lucas na segunda metade do século.

Religião como espaço de liberdade e libertação

Em seu evangelho, entre os capítulos 9 a 19, Lucas apresenta um Jesus que provoca caminhos novos nos quais se possa entender a experiência de Deus e viver a religião como espaço de liberdade e libertação. As conversas e reflexões deste bloco do evangelho estão direcionadas principalmente para as pessoas que seguiam a Jesus mais de perto (chamados de discípulos ou de os Doze em outro evangelho).

Depois de uma longa conversa sobre o desapego, provavelmente visando colaborar com a comunidade para que compartilhe seus recursos humanos e econômicos, Jesus pede que os discípulos tenham os “rins cingidos e as lâmpadas acesas”. Eles devem estar sempre preparados para serem “excêntricos”: preparados para sair de si mesmos, desapegar-se de seu lugar comum e mover-se em direção ao outro e ao mundo, que clama e geme dores de parto (Romanos 8,22).

Cingir os rins: discernir pela vida em plenitude

Há uma tradição bíblica que identifica os rins como o lugar dos sentimentos, o lugar do afeto, por onde somos “afetados” pelo mundo externo e pela experiência íntima de Deus. É o lugar da nossa consciência ética e estética. É o lugar das nossas decisões. Temos que decidir por onde ir, que teologia desenvolver, a quem escutar. É preciso saber “quem é o meu próximo”, que conflitos assumir e decidir viver para Deus, não para nossas verdades e posses. Cingir os rins é pedido para estar preparadas/os, para movimentar nosso corpo em defesa dos valores do Reino. É requisito e expressão da fé: movimento pela vida e plenitude.

Ficar com a lâmpada acesa: iluminar a escuridão do mundo Jesus também nos pede para ficar com a lâmpada acesa. Somos chamadas/os para estar como luz, como indicador de caminho, como facilitador de processos e como iluminador da escuridão diante e dentro do mundo. O encontro com Jesus e a convivência com ele deve nos encher de energia (dínamo, no grego, significa força, poder). Com Jesus, temos condições de atuar no cotidiano não nos deixando “conformar” pelos poderes opressores e hegemônicos deste mundo em que vivemos. Transformados, vivemos pela fé para outro mundo possível e podemos desenvolver outras teologias possíveis em favor da vida e da libertação.

A lâmpada acesa não deve ser usada para cegar e impedir que novidades sejam descobertas. Os rins cingidos são para redescobrir nossa vocação para a indignação e para a missão: ocupar as ruas e as ideo-teologias para que a vontade de Deus seja feita assim na terra como no céu; para que a justiça e misericórdia sejam o prato do dia; para que o pão nosso cotidiano seja realidade.

Vocação não é talento, é chamado, convocação a escutar a vontade de Deus com os ouvidos do coração Para a Igreja Católica Romana, agosto é o mês dedicado às “vocações”. É bom lembrar que vocação não é habilidade, talento. Vocação é CHAMADO, CONVOCAÇÃO. Por isso cingir os rins e manter nossa luz acessa é tão importante. Para escutar com os ouvidos do coração (no nosso mais interior) a voz de Deus que clama no deserto, que grita através do povo e dos grupos violentados e excluídos do convívio e estrutura social e das igrejas e grupos religiosos.

O que estamos ouvindo? A quem estamos ouvindo? Que chamado (vocação) estamos atendendo? Estejam preparadas/os sempre. Porque o Filho do Homem (profeta, militante da vida e da inclusão) aparece de surpresa e surpreende como aparece. Estejamos preparadas/os. Esperemos contra toda esperança (Romanos 4,18) e oremos (ora et labora – orar e trabalhar) para que a vontade de Deus seja feita e sua palavra seja nossa palavra: ação criadora e plural neste mundo e no mundo que há de vir, agora e depois.